Há casos que doem mais do que outros. Há tragédias que expõem, de forma cruel, aquilo que grande parte da população brasileira já sabe, mas insiste em negar para não perder a fé em nossas instituições: no Brasil, a justiça falha — e quando falha, ela destrói vidas. Não por acidente. Mas por omissão, lentidão, descaso e burocracia desumana.
O caso da jovem catarinense presa injustamente por seis anos
e que morreu de câncer pouco mais de dois meses após ser absolvida, é um
retrato fiel de um sistema que, ao invés de proteger inocentes e punir
culpados, muitas vezes inverte os papéis.
Como pode o Estado — que deveria ser o guardião da dignidade
humana — permitir que alguém seja mantido atrás das grades enquanto não há
provas suficientes para condenação? Como permitir que uma mulher adoecida,
enfraquecida e sofrendo, tenha um pedido de prisão domiciliar negado, mesmo sem
representar risco à sociedade?
Quem responde por isso? Quem assume a culpa por esse corpo
devastado, por essa vida interrompida, por essa família destruída? A resposta é
conhecida e vergonhosa: ninguém. No Brasil, quando o sistema erra, o inocente
paga. Quando o culpado é poderoso, ele vai para casa, dorme tranquilo, recorre
quantas vezes quiser, sorri em liberdade.
Enquanto isso pais perdem o
direito de ver os filhos, mas são obrigados a pagar pensão sob ameaça de
prisão. Gente simples é encarcerada preventivamente por anos, sem julgamento. Pessoas
pobres recebem sentenças mais duras. Quem tem dinheiro, influência ou um
sobrenome forte raramente conhece o peso de uma cela.
Para bandidos de colarinho branco, corruptos milionários,
traficantes protegidos por advogados de elite, assassinos com padrinhos
políticos — a justiça não é cega. Ela enxerga muito bem. E costuma ser generosa.
O cidadão comum, aquele que trabalha, paga impostos, sustenta o próprio Estado
que o oprime, esse sim enfrenta a justiça como um inimigo: frio, lento,
distante, impiedoso.
O Brasil desperta, todos os dias,
diante de um espetáculo de dores evitáveis — e, no centro desse drama repetido,
está o nosso sistema de justiça. Hoje, temos de erguer a voz não apenas em
lamento, mas em denúncia, para o caso brutal de Damaris Vitória Kremer da Rosa,
jovem de 26 anos, catada pelo Estado, acusada sem provas suficientes, mantida
por seis anos em prisão preventiva por um crime do qual foi absolvida apenas em
agosto de 2025.
Ela foi encarcerada em agosto de
2019, sob acusação de envolvimento em homicídio no RS, em 2018. No cárcere,
manifestou sintomas graves: dores, sangramentos indicativos de câncer no colo
do útero — doença que lhe foi diagnosticada enquanto estava presa. Mesmo assim,
seus pedidos de liberdade foram sucessivamente negados pelo Ministério Público
e pelo Judiciário, sob o argumento de que os documentos médicos seriam “meros
receituários, sem diagnóstico”. Somente em março de 2025, já em condição muito
debilitada, teve a prisão convertida em domiciliar, com tornozeleira
eletrônica. E apenas em agosto foi declarada inocente pelo júri. Dois meses e
quatorze dias após a absolvição — 74 dias — ela faleceu. Tudo isso consumado
pelo câncer que avançou enquanto o Estado lhe impunha o isolamento.
A jovem que morreu, morreu duas
vezes: Morreu quando foi arrancada da convivência com sua família e jogada em
uma cela. Morreu novamente quando o Estado, mesmo diante da doença, negou
humanidade. E quando finalmente veio a absolvição — tarde demais — o Estado
lavou as mãos. Nenhum pedido de desculpas oficial. Nenhum reconhecimento
público de culpa. Nenhuma reparação que devolva anos de dor. Somente mais um
caso de injustiça da justiça no país da impunidade e dos absurdos.
Porque no Brasil, vida de gente simples não tem valor para o
sistema. E o mais assustador disso tudo é saber que qualquer um pode ser o
próximo. Vivemos em um país onde a injustiça não é exceção — é rotina.
Se a justiça brasileira nasceu para proteger o inocente e punir o culpado, então há muito tempo ela esqueceu sua missão. Enquanto casos assim forem apenas estatísticas a injustiça continuará sendo parte estruturante do Brasil. E você que lê isso agora, não ria, não aponte o dedo, não diga “isso nunca vai acontecer comigo”. Porque a justiça que falhou com ela pode falhar com você. E quando falhar — ela não vai pedir desculpas.
